A voz feminina era a dela. Ele a descobriu aos poucos, a partir primeira noite que eles passaram juntos. Aquela noite (e algumas depois) ela não acreditava estar com aquele homem que parecia materializar todos os clichês do seu homem idealizado: o cara mal encarado, com jeito de mal humorado, barbudo, magrelo, cabelos desgrenhados e incrivelmente macios, a barba farta, as mãos grandes, certeiras, o rosto fino com traços fortes e um tanto caricatos envoltos em fumaça de cigarro. Ele era aquele ex-caso, talvez namoro, aquela ex-paixão intensa, quiçá a mais arrebatadora.
"Olha o que eu achei. Eu podia ter te ensinado a cantar. Podia ter te produzido. Me liga."
Ele parecia não lembrar que ela não quisera que ele a ensinasse a cantar, muito menos ser quisera mais uma artista da sua carteira. Gostava demais dele. O suficiente para saber que o perfeccionismo obsessivo que ele dispensava ao seu trabalho mataria o romance. E foi o que aconteceu, mesmo sem que ela tivesse virado cantora criada por ele, mesmo sem aulas de canto, mesmo sem aprender a tocar Bach, mesmo sem que ela tivesse oficialmente mudado para a casa dele. Aconteceu porque ele passou a se considerar um "proto-marido", mesmo que ela o ouvisse em conversas que ele considerava sessões de terapia, mesmo que ela o tivesse salvado de duas tentativas de suicídio, mesmo que dormisse poucos dias da semana na casa dele, que ela ouvisse sempre dos amigos dele que há muito não o viam tão leve e que tenha levado na esportiva todas as indiretas a respeito de sua idade das amigas dele: ela tinha só 23 e ele 39.
Mas e aqueles arquivos no dropbox dela? Eram dois MP3. Eles o gravaram num dia em que chegaram bêbados de um show de jazz. Ela enlouquecida por ele, parecia querer devorá-lo com beijos. Ele a largou e sentou ao piano.
"Você nunca me viu tocar, né?"
"Não! Toca!"
"Vai na cozinha e pega whisky pra mim. Sem gelo. Quer que eu toque o que?"
"Não sei... o que cê quiser"
Quando ela chgou na cozinha, ele já tocava Bach, a sonata em B menor, com o cigarro que acendera antes que ela saísse da sala no canto da boca. Ao voltar e entregar o copo de whisky, ela o viu segurar copo e cigarro na mesma mão, tomar tudo com um só gole, voltar o cigarro para a boca e continuar tocando. Não se conteve e riu ao levantar a voz para dizer: "Caralho! Cê parece Serge Gainsbourg tocando!". Ele dedilhou a introdução da Le poinçonneur des lilas e disse que ela era, neste caso, a Jane B dele: uma menininha linda, atrevida, voluptuosa, com aquela voz gostosa, sussurrada sempre ao pé do seu ouvido. E entre whiskys e cigarros, ela não lembra bem como, gravaram duas músicas: La Decadense e Je t'aime moi non plus. Eram os dois arquivos que recebera via dropbox.
O ímpeto de ligar para ele era forte. A vontade de beijá-lo e passar mais uma noite com ele também. Então ela não hesitou: pegou um vinho na cozinha, abriu, bebeu um gole generoso da garrafa mesmo, acendeu um cigarro, deu um trago e mandou um whatsapp para uma amiga: "Dani, vamos no cinema, tomar uma cerveja, ou fazer qualquer coisa que vc queira? Chama teu namorado e toda a galera que quiser. Agora! Mon Serge na área. Melhor evitar o PELIGRO".